O sono para outros tipos de memórias

O sono para outros tipos de memórias

“Todos os estudos que descrevi até agora se dedicam a um único tipo de memória – a de factos, que associamos com conhecimentos que retiramos dos manuais ou com a recordação do nome de alguém. Porém, no cérebro existem muitos outros tipos de memória, incluindo a memória processual. Imagine, por exemplo, a atividade de andar de bicicleta. Quando era criança, os seus pais não lhe deram um manual chamado Como andar de Bicicleta, não lhe pediram que o estudasse e não esperavam que depois de o ler começasse a andar na sua bicicleta com verdadeiro domínio. Só consegue aprender a andar de bicicleta experimentando andar numa bicicleta e não a ler como se anda. Ou seja, tem de praticar. O mesmo acontece com todas as capacidades motoras, seja a aprender a tocar um instrumento, praticar um desporto, fazer cirurgia ou pilotar um avião.

O termo «memória muscular» é, na verdade incorreto. Os músculos propriamente ditos não possuem capacidade de memorização: um músculo que não esteja ligado ao cérebro não consegue desempenhar qualquer atividade hábil; os músculos não armazenam rotinas especializadas. Assim, a memória muscular não é mais do que memória cerebral. Treinar e reforçar o nível muscular pode ajudá-lo a executar melhor uma memória especializada. Mas a rotina propriamente dita – o programa da memória – reside firme e exclusivamente no cérebro.

(…)

A minha descoberta final, que se estendeu durante quase uma década de investigação, identificou o tipo de sono responsável pelo melhoramento noturno das capacidades motoras, englobando lições sociais e médicas. O aumento de velocidade e precisão, sustentados pela automaticidade eficiente, estava diretamente relacionado com a quantidade de fase 2 do sono NREM, principalmente nas duas últimas horas de uma noite completa com oito horas de sono (por exemplo, das cinco às sete da manhã, se adormeceu às onze da noite). Na verdade, o número dos maravilhosos fusos de sono daquelas duas últimas horas da madrugada – o tempo da noite mais rico em explosões de atividade cerebral – relacionava-se com a melhoria da memória offline.

O facto mais impressionante é que o aumento destes fusos de sono depois da aprendizagem se detetava apenas nas regiões do escalpe que se localizam por cima do córtex motor (mesmo em frente ao cocuruto da cabeça), e em outras áreas. Quanto maior era o aumento dos fusos de sono na região do cérebro que exaustivamente forçámos a aprender a capacidade motora, melhor era o seu desempenho a acordar.

Usain Bolt, a superestrela dos 100 metros, dormiu muitas vezes a sesta antes de quebrar o recorde mundial e antes do final dos Jogos Olímpicos em que ganhou medalhas de ouro.

Nos anos que passaram desde as nossas descobertas, numerosos estudos demonstraram que o sono melhora as capacidades motoras de atletas juniores, amadores e atletas de elites de desportos tão diversos como ténis, basquetebol, futebol, futebol americano e remo. Tanto assim foi que em 2015, o Comité Olímpico Internacional publicou uma declaração consensual salientando a importância crítica, e a necessidade fundamental, do sono no desenvolvimento atlético transversal a todos os desportos masculinos e femininos.

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Se dormir antes das provas é importante, o depois é igualmente fundamental, pois o sono após o desempenho acelera a recuperação física das inflamações comuns, estimula  a reparação muscular e ajuda a reabastecer a energia celular sob a forma de glucose e glicogénio.

O sono pode fazer muitas coisas que atualmente a medicina não tem ao seu alcance. Desde que as provas científicas o justifiquem, devíamos fazer bom usos da poderosa ferramenta de saúde que o sono representa na recuperação dos nossos pacientes.”

Fonte: Walker, Matthew; Porque dormimos?; Men’s  , fevereiro 2019, 978-989-8892-25-6 Pág 139 a 148